Voltámos a comprar ruibarbo no mercado. Quando cheguei a casa, preparei-me para descascar e cortar em troços este vegetal da terra do sol nascente. Ao ver-me com um quilo de talos rosa no colo, o meu marido mostrou satisfação e perguntou como é que ia fazer o bolo. Perante as minhas dúvidas e indecisões, sugeriu um curto telefonema à sua mãe a pedir outra receita de bolo de ruibarbo. Acedi e tentei seguir a conversa telefónica nos primeiros minutos, mas quando vi o meu marido a escrevinhar no bloco de notas, desliguei-me da comunicação em prussiano que, de todos os modos, estava a passar por mim a uma certa distância. Quando todo o ruibarbo ficou em pequeninos troços de 1 cm, juntei 2 colheres de sopa de açúcar, meia dúzia de morangos e deixei repousar durante a noite.
No dia seguinte, pus a cozinhar em lume brando o ruibarbo e os morangos na água produzida pela reacção do açúcar. Entretanto, abri o caderno onde estava a receita da sogra e pensei: “ai… acho que conseguiria perceber melhor uma receita passada à mão por um médico egípcio! como é que vou sair desta?”. Chamei pelo meu marido, que me respondeu algo da outra ponta da casa cujo conteúdo linguístico não consegui decifrar, mas cujo conteúdo para-linguístico, tendo em conta o choro de bebé em ruído de fundo, era claro e traduzir-se-ia em algo como: “ai… agora nããããõoooo!…” . A minha voz interior disse-me que o que tem que ser, sê-lo-á, então arregacei as mangas e dispus-me a analisar os materiais e métodos da receita.
Um traço horizontal dividia a folha onde estava a receita da sogra. Acima deste equador, alguns ingredientes intercalados por palavras chave e, abaixo, 4 ingredientes e um título formavam o quebra cabeças daquela tarde de sábado.
Ignorei os elementos que à partida não consegui decifrar e concentrei-me nos elementos mais claros da lista. Então, na “lista norte” tínhamos: ovos e açúcar, 1/4 L de natas, uma palavra concerteza chave que não me dirigiu palavra à primeira, continuei, 2 colheres de sopa de … quê? …, continuei, e o fim da lista “Norte” era raspa de limão.
Desci para a lista “Sul”, onde claramente li o verbo “juntar” e pensei: “finalmente, temos a acção deste problema culinário! Será “juntar” a lista norte com a lista sul?”. O processo de investigação e decifração ainda não tinha terminado, então guardei a pergunta para mais tarde. A seguir ao verbo, deparei-me com o subtítulo que era “massa de …. de …” de quê? passei ao próximo ponto e, a partir daqui, a lista de ingredientes era clara: 200gr de farinha, 100gr de manteiga, açúcar, 2 ovos. Tinha então a receita para uma massa cujo conteúdo conhecia e nome desconhecia. Ingenuamente, pensei: “sabendo o conteúdo, o que interessa o nome?”. Pus mãos à obra: juntei 200 gr de farinha de trigo a 100 gr de manteiga amolecida, 2 colheres de sopa de açúcar e 2 ovos. Bati a massa na máquina e, observando a consistência, pensei: “ah, isto deve ser um crumble, mas diferente do que conheço, deve ser um crumble prussiano!”. Para passar desta observação e hipótese à conclusão de que era um crumble prussiano não foi preciso qualquer teste e senti-me satisfeita por ter encontrado uma solução para a zona sul do quebra cabeças.
Reservei esta massa e voltei à zona norte. O meu marido veio à cozinha com a pequerrucha, que agora se estava a portar como um anjinho, e eu limitei-me a pedir-lhe para ele me ler o que não tinha percebido na lista norte. Então, a receita desta massa era: 3 ovos, 1/4 L de natas, importante, 2 colheres de sopa de maizena, canela, raspa de limão. Assumi que esta era a massa base, apesar de achar estranho ser tão fluída. Pus no forno aquecido a 180 graus por 10 minutos, depois adicionei a compota de ruibarbo e morango e dispus-me a dispor o “crumble prussiano” por cima da compota. Confesso que nunca fiz crumble e não faço ideia qual a sua consistência em crú, então voltei a improvisar, fazendo pequenas bolinhas e espalmando-as. Ao sentir a massa na minha mão, fez-se então luz e num ápice solucionei todas as questões que tinha deixado em aberto durante a análise da lista! Ah, este “crumble prussiano” não era afinal crumble nenhum mas a massa de base!!! E este era o título da lista sul! … e exactamente por isso a outra massa era tão fluída! E o que era para juntar era o ruibarbo à massa mais líquida e não a massa base por cima do ruibarbo! Tapei todo o bolo com bolinhas espalmadas de massa, deixando umas frestazinhas entreabertas, que permitiam vislumbrar o rosa da compota de ruibarbo e morango.
Desolada, dirigi-me ao meu marido e disse-lhe que as minhas conclusões precipitadas tinham deixado tudo de pernas para o ar e que, só quando era tarde demais, percebi o segredo da receita. “Segredo?! Qual segredo?”, perguntou, “então, a segunda receita era afinal a massa base, e eu usei-a como crumble…”, expliquei. “crumble?!?!?, mas desde o início que estava claríssimo que esta não era uma receita de crumble!”, disse-me em prussiano, ao que repliquei em português:”diz?! crumble claro no início??”. Entretanto, fomos salvos pelo gongo do forno que nos avisou que o bolo estava pronto.
Provámos, regalámos os sentidos e não foi preciso trocar uma palavra para adivinhar que pensámos em uníssono: “pode ser um bolo ao revés, feito de pernas para o ar, mas ficou delicioso!”
E com esta receita aprendi que, mesmo que a comunicação no casal se faça a duas línguas, mesmo que o ruído ambiente não deixe perceber as palavras chave, é possível comunicar claramente. Desde que não se siga “o bom conselho” dum poeta cuja música me toca na alma e me diz sempre “aja duas vezes antes de pensar” e se pense várias vezes em prussiano antes de agir em português.