Preâmbulo
É tempo de festa: comemora-se o aniversário de um blogue muito especial, genuíno e muito bem cuidado. Falo do Figo Lampo, um espaço com belíssimos textos, imagens extremamente apelativas e receitas deliciosas. Aqui, entro sem bater a porta quando quero matar saudades da minha terra e tenho o sorriso luminoso da dona deste blogue a receber-me. Para a Margarida, mando um grande beijinho de parabéns pela tripla comemoração que o mês de Julho lhe oferece. O seu filho faz três meses, a Margarida faz 33 e o Figo Lampo faz três anos. Assim, tal como dizem as regras do desafio, numa ode ao três, conto três estórias de três mulheres do mar, que viveram em três séculos diferentes e em três terras com o mesmo nome.
I. Cabo de Finisterre, Galiza, 12 de Abril de 1999 (Entrada)
Era primavera e Marina estava apaixonada. Tinha agora 30 anos e passado por duas relações infrutíferas. Mas fora agora, à terceira, que Marina encontrara o amor da sua vida. Soubera-o quando pousara os seus olhos cinzentos, como cinza, nos olhos verdes dele. O verde límpido do seu olhar e a sua pele de seda que tanto a encantaram não pertenciam a um príncipe encantado de armadura reluzente e cavalo branco, mas a um homem vivido, cicatrizado, viajado pelo mundo, que tinha já olhado a morte de frente e amado tantas outras mulheres. “Meu cabalero herrumbroso…”, dizia-lhe ela num misto de provocação e amor. Ele, sentia-se como um menino perto dela. Os joelhos tremiam-lhe, as mãos suavam e o coração queria saltar-lhe pela boca. Aquele Abril brindou-os com temperaturas excepcionais para a época. Ela acordava a meio da manhã, punha o seu biquini vermelho, comprado a pensar nele, e ia para a praia. Passava no corpo óleo de cheiros tropicais e sonhava que eram as mãos dele que torneavam todo o seu corpo delgado. Quando o sol ía a pique, regressava a casa e preparava-se para o seu turno de trabalho. À noite, dirigia-se ao paredão que separava a terra do mar e telefonava ao seu “cabalero”. “Estou a ouvir o barulho do mar, ou da estrada?”, perguntava-lhe ele, sabendo já a resposta, só para lhe responder: “ah, o mar… queria mergulhar agora no teu mar”. Deixavam-se ficar num silêncio que tudo dizia sobre a tripla amor, saudade e dor. “Encontramo-nos esta noite no cais, para cerveja, tapas e beijinhos”, dizia-lhe ela. Dirigia-se a casa, adormecia com a maresia nos seus cabelos de ondas de mar e dirigia os seus sonhos para o cais onde a esperava o seu amor. Hoje, vivem numa casa com o mar à frente e as montanhas atrás, que tem uma macieira, uma laranjeira e uma cerejeira no quintal e tem as gargalhadas e correrias das suas três crianças.
II. Finistère, Bretagne, 3 de Dezembro de 1899 (Sopa)
Anamar tinha 99 anos. Era a mais velha da sua aldeia. Vivia numa mansão enrugada, isolada, a combinar com a sua pele e a sua alma. Esta mansão vira já várias gerações de sua família nascerem e morrerem. Perdera o pai aos 6 anos, e com ele fora-se também a sua mãe e a sua infância, entregue a uma mulher que aparecera para tomar conta de Anamar. A madrasta de todas as estórias para crianças que a sua mãe lhe contava antes de adormecer. Anamar era a cozinheira, criada e o divã de psicólogo desta mulher. Um dia, ao regressarem a casa depois de um dia de labuta no mercado, a mulher disse a Anamar com azedume: “Prepara-te para o castigo da tua vida”. O coração de Anamar encolhera, as pernas tremeram-lhe, o sangue fugiu-lhe. E ela queria também fugir. O trajecto para casa, nunca fora tão curto, nunca fora tão longo. Queria que os passos que dava para a frente, a encaminhassem para trás, que o tique do relógio passasse a dar-se na direcção contrária. Queria que o mar fosse até ela e a engolisse. Queria fugir. Mas para onde? Não tinha família, não tinha amigos. Ao entrarem em casa, Anamar pensou que ia morrer naquela noite. Pensou que poderia morrer e não poderia gritar por ninguém, naquela mansão isolada que tantos gritos aprisionara nas suas paredes. A mulher rasgou-lhe as roupas do corpo, agarrou-lhe o braço esquerdo com a sua mão esquerda e, com uma colher de pau, começou a espancar Anamar. A colher chocou contra o seu corpo de criança, uma, duas, três vezes. Anamar chorava de medo, de dor. Chamava pela sua mãe, sabendo inúteis os seus gritos. A partir da terceira pancada, Anamar deixou o seu corpo e observou de longe aquela mulher cheia de raiva a despejar no seu corpo frágil todo o seu amargor. Não sabe quanto mais apanhou, quanto tempo durou, como acabou. Nessa noite, foi a mulher que fez o jantar. Atirou três batatas, três cenouras e uma mão cheia de ervilhas para a panela e fez uma sopa. Sem sal, sem gordura, sem amor. Anamar tentou engolir a sopa entre os soluços compulsivos mas mal conseguia segurar na colher. Adormeceu a soluçar e nunca mais conseguiu comer ervilhas na sua vida. Passaram-se anos, Anamar fez-se adulta e a mulher desapareceu. Voltou um dia, quando a velhice lhe bateu à porta, pedindo caridade a Anamar. Anamar não conseguiu articular palavra. Ao virar as costas, a mulher disse-lhe: “Tu fizeste-me sofrer muito! Ainda fazes!”. A porta fechou-se, como se tivesse vida própria. Anamar estava sem reacção. Hoje ainda recorda aquele episódio com dor. Deitada no seu leito, deixa o último suspiro sair de si em direcção ao Mar.
III. Land’s End, Cornwall, 24 de Julho de 2033 (Prato principal)
Ondine era daquelas mulheres especiais. De corpo frágil, dificilmente se conseguia equilibrar ao andar, mas era exímia nadadora. Refugiava-se nas praias e falésias desta sua Finisterra, para fugir aos outros habitantes da aldeia e com quem nunca se identificou. No seu refúgio, cantava para si, para os peixes e para afugentar os seus medos. A sua voz poderosa e sedutora, ecoava em toda a aldeia. Corria a lenda que Ondine era sereia, vinda do mar para encantar os mortais com o seu canto. Quando ia para casa, rezava para não se cruzar com ninguém no caminho. Já sabia que ia ouvir das vizinhas um falsa piedade. “Ó filha, estás tão magrinha. Tens que comer mais. Vem à minha casa, tenho um peixinho que estufei em tomate e cebola”. Já sabia que não se ia conter, que lhes ia responder: “Go f&ck yourself, suas bisbilhoteiras!”. Não conseguia comer peixe, eram os peixes os seus melhores amigos. Naquele entardecer, saíu à rua e dirigiu-se à falésia como em tantos outros dias fazia. E pensou que há já tanto tempo não mergulhava no mar, não nadava até à linha do horizonte. Avançou mais três passos. Estava naquele ponto de quase-equilibrio, no fio da navalha. Ouviu o mar chamar. Vem, a mim… Amy… a mim… Observou o céu pintado de vermelho e laranja e pensou que o vento comandaria agora o seu destino. Faltavam-lhe tres para chegar aos trinta. Um sopro fê-la mergulhar num mergulho eterno no seu mar. Hoje, volvidos mais de 20 anos, os habitantes da sua aldeia continuam a ouvir a sua voz encantada.
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