Outubro …

… é um mês de comemorações. Comemora-se a chegada do Outono, que transforma em oiro e rubi, as folhas verdes que o verão abandonou. Comemora-se a implantação da Republica Portuguesa e comemora-se a unificação da Alemanha.

Comemoramos o aniversário da minha filha, mas ela não é a única de parabéns em Outubro. O reino da Prússia também está de parabéns, comemorando hoje 2 anos. Na verdade, eu comemoro este espaço todos os dias (ou quase!) pelo prazer que me dá, pelo feedback tão positivo que recebo e pelas amizades construídas com base no gosto comum pela cozinha.

A todos os meus leitores, muito obrigada por passarem por aqui. São vocês que dão vida a este espaço! E porque não há aniversário sem bolo, deixo a receita do bolo que fiz para o aniversário da minha filha. Quando lhe perguntei se queria bolo de chocolate ou de maçã, a sua resposta foi clara: chocolate. Então, fiz esta receita do bolo de laranja da minha avó, trocando o sumo e raspa de laranja por um copo de leite com três colheres de chá de cacau. Ficou um bolo fofinho e com preponderante sabor a chocolate. De repetir!

três finisterras, três estórias, três pratos

Preâmbulo

É tempo de festa: comemora-se o aniversário de um blogue muito especial, genuíno e muito bem cuidado. Falo do Figo Lampo, um espaço com belíssimos textos, imagens extremamente apelativas e receitas deliciosas. Aqui, entro sem bater a porta quando quero matar saudades da minha terra e tenho o sorriso luminoso da dona deste blogue a receber-me. Para a Margarida, mando um grande beijinho de parabéns pela tripla comemoração que o mês de Julho lhe oferece. O seu filho faz três meses, a Margarida faz 33 e o Figo Lampo faz três anos. Assim, tal como dizem as regras do desafio,  numa ode ao três, conto três estórias de três mulheres do mar, que viveram em três séculos diferentes e em três terras com o mesmo nome.

I. Cabo de Finisterre, Galiza, 12 de Abril de 1999 (Entrada)

Era primavera e Marina estava apaixonada. Tinha agora 30 anos e passado por duas relações infrutíferas. Mas fora agora, à terceira, que Marina encontrara o amor da sua vida. Soubera-o quando pousara os seus olhos cinzentos, como cinza, nos olhos verdes dele. O verde límpido do seu olhar e a sua pele de seda que tanto a encantaram não pertenciam a um príncipe encantado de armadura reluzente e cavalo branco, mas a um homem vivido, cicatrizado, viajado pelo mundo, que tinha já olhado a morte de frente e amado tantas outras mulheres. “Meu cabalero herrumbroso…”, dizia-lhe ela num misto de provocação e amor. Ele, sentia-se como um menino perto dela. Os joelhos tremiam-lhe, as mãos suavam e o coração queria saltar-lhe pela boca. Aquele Abril brindou-os com temperaturas excepcionais para a época. Ela acordava a meio da manhã, punha o seu biquini vermelho, comprado a pensar nele, e ia para a praia. Passava no corpo óleo de cheiros tropicais e sonhava que eram as mãos dele que torneavam todo o seu corpo delgado. Quando o sol ía a pique, regressava a casa e preparava-se para o seu turno de trabalho. À noite, dirigia-se ao paredão que separava a terra do mar e telefonava ao seu “cabalero”. “Estou a ouvir o barulho do mar, ou da estrada?”, perguntava-lhe ele, sabendo já a resposta, só para lhe responder: “ah, o mar… queria mergulhar agora no teu mar”. Deixavam-se ficar num silêncio que tudo dizia sobre a tripla amor, saudade e dor. “Encontramo-nos esta noite no cais, para  cerveja, tapas e beijinhos”, dizia-lhe ela. Dirigia-se a casa, adormecia com a maresia nos seus cabelos de ondas de mar e dirigia os seus sonhos para o cais onde a esperava o seu amor. Hoje, vivem numa casa com o mar à frente e as montanhas atrás, que tem uma macieira, uma laranjeira e uma cerejeira no quintal e tem as gargalhadas e correrias das suas três crianças.

II. Finistère, Bretagne, 3 de Dezembro de 1899 (Sopa)

Anamar tinha 99 anos. Era a mais velha da sua aldeia. Vivia numa mansão enrugada, isolada, a combinar com a sua pele e a sua alma. Esta mansão vira já várias gerações de sua família nascerem e morrerem. Perdera o pai aos 6 anos, e com ele fora-se também a sua mãe e a sua infância, entregue a uma mulher que aparecera para tomar conta de Anamar. A madrasta de todas as estórias para crianças que a sua mãe lhe contava antes de adormecer. Anamar era a cozinheira, criada e o divã de psicólogo desta mulher. Um dia, ao regressarem a casa depois de um dia de labuta no mercado, a mulher disse a Anamar com azedume: “Prepara-te para o castigo da tua vida”. O coração de Anamar encolhera, as pernas tremeram-lhe, o sangue fugiu-lhe. E ela queria também fugir. O trajecto para casa, nunca fora tão curto, nunca fora tão longo. Queria que os passos que dava para a frente, a encaminhassem para trás, que o tique do relógio passasse a dar-se na direcção contrária. Queria que o mar fosse até ela e a engolisse. Queria fugir. Mas para onde? Não tinha família, não tinha amigos. Ao entrarem em casa, Anamar pensou que ia morrer naquela noite. Pensou que poderia morrer e não poderia gritar por ninguém, naquela mansão isolada que tantos gritos aprisionara nas suas paredes. A mulher rasgou-lhe as roupas do corpo, agarrou-lhe o braço esquerdo com a sua mão esquerda e, com uma colher de pau, começou a espancar Anamar. A colher chocou contra o seu corpo de criança, uma, duas, três vezes. Anamar chorava de medo, de dor. Chamava pela sua mãe, sabendo inúteis os seus gritos. A partir da terceira pancada, Anamar deixou o seu corpo e observou de longe aquela mulher cheia de raiva a despejar no seu corpo frágil todo o seu amargor. Não sabe quanto mais apanhou, quanto tempo durou, como acabou. Nessa noite, foi a mulher que fez o jantar. Atirou três batatas, três cenouras e uma mão cheia de ervilhas para a panela e fez uma sopa. Sem sal, sem gordura, sem amor. Anamar tentou engolir a sopa entre os soluços compulsivos mas mal conseguia segurar na colher. Adormeceu a soluçar e nunca mais conseguiu comer ervilhas na sua vida. Passaram-se anos, Anamar fez-se adulta e a mulher desapareceu. Voltou um dia, quando a velhice lhe bateu à porta, pedindo caridade a Anamar. Anamar não conseguiu articular palavra. Ao virar as costas, a mulher disse-lhe: “Tu fizeste-me sofrer muito! Ainda fazes!”. A porta fechou-se, como se tivesse vida própria. Anamar estava sem reacção. Hoje ainda recorda aquele episódio com dor. Deitada no seu leito, deixa o último suspiro sair de si em direcção ao Mar.

III. Land’s End, Cornwall, 24 de Julho de 2033 (Prato principal)

Ondine era daquelas mulheres especiais. De corpo frágil, dificilmente se conseguia equilibrar ao andar, mas era exímia nadadora. Refugiava-se nas praias e falésias desta sua Finisterra, para fugir aos outros habitantes da aldeia e com quem nunca se identificou. No seu refúgio, cantava para si, para os peixes e para afugentar os seus medos. A sua voz poderosa e sedutora, ecoava em toda a aldeia. Corria a lenda que Ondine era sereia, vinda do mar para encantar os mortais com o seu canto. Quando ia para casa, rezava para não se cruzar com ninguém no caminho. Já sabia que ia ouvir das vizinhas um falsa piedade. “Ó filha, estás tão magrinha. Tens que comer mais. Vem à minha casa, tenho um peixinho que estufei em tomate e cebola”. Já sabia que não se ia conter, que lhes ia responder: “Go f&ck yourself, suas bisbilhoteiras!”. Não conseguia comer peixe, eram os peixes os seus melhores amigos. Naquele entardecer, saíu à rua e dirigiu-se à falésia como em tantos outros dias fazia. E pensou que há já tanto tempo não mergulhava no mar, não nadava até à linha do horizonte. Avançou mais três passos. Estava naquele ponto de quase-equilibrio, no fio da navalha. Ouviu o mar chamar. Vem, a mim… Amy… a mim… Observou o céu pintado de vermelho e laranja e pensou que o vento comandaria agora o seu destino. Faltavam-lhe tres para chegar aos trinta. Um sopro fê-la mergulhar num mergulho eterno no seu mar. Hoje, volvidos mais de 20 anos, os habitantes da sua aldeia continuam a ouvir a sua voz encantada.

Bolo de chocolate à la Irvine Welsh para dois aniversários

Perguntei ao meu marido se para o seu aniversário queria o bolo de queijo da sua avó ou um bolo de chocolate recheado com morango. Perante a sua indecisão, decidi eu pelo bolo de chocolate e mergulhei eu numa outra indecisão: que receita escolher. Na verdade, bastou-me dar uma vista de olhos à prateleira dos livros de cozinha para decidir. A estória do bolo de chocolate à la Irvine Welsh, do livro Kafka´s Soup, já me tinha cativado. Depois de dar umas valentes risadas com o texto, deitei a mão à massa, evitando deitar o nariz na farinha, tal como o protagonista da estória, a um certo passo da receita. E nessa altura, mal sabia eu que este bolo seria não só de um aniversário real, mas também entraria na comemoração virtual do aniversário da Ana!  Mas há coincidências felizes, e de uma cozinha prussiana para uma cozinha viking, envio um bolo que celebra Maio duplamente – real e virtualmente – ainda que o faça só em Junho, e no último dia, como também é de esperar desta cozinha prussiana.

Comecei por derreter 200 g de manteiga (250 na receita original) num tacho de tamanho médio. À manteiga já derretida, juntei 240 g de açúcar (500 g na receita original) e mexi até formar uma mistura dourada. Juntei à mistura 30 g de cacau em pó (40 na receita original) e 150 g de chocolate de leite em barra. Deixei o chocolate derreter, mexendo sempre. Quando começou a ferver, juntei 250 mL de café e misturei, tirando agora o tacho do lume. Num recipiente à parte, juntei 2 ovos e 275 g de farinha com fermento. Misturei e adicionei 125 mL de vinho do Porto (375 na receita original). Juntei a mistura de chocolate à mistura de ovos e farinha e distribui por duas formas redondas. Pus em forno aquecido a 200 graus e, passado 45 minutos, o teste do palito deu positivo (1 hora na receita original). Entretanto, fiz a ganache de chocolate, derretendo 200 g de chocolate negro com 100 g de açúcar e 100 mL de  natas. Depois, dediquei-me ao recheio de morango, que não consta da receita original e foi feito seguindo somente o meu instinto. Deixei cerca de 300 g de morangos em 5 colheres de sopa de açúcar e um cálice  de vinho do Porto durante cerca de meia hora. Depois, levei a mistura a lume brando durante certa de 15 minutos, mexendo frequentemente. E voltei ao bolo. Retirei do forno, deixei arrefecer e espalhei a ganache por uma das bases. Por cima, distribui o doce de morangos. Coloquei a outra base e distribui o resto da ganache de chocolate por todo o bolo. Enfeitei com morangos frescos. Foi ao frigorífico durante cerca de 3 horas. Quando chegou o esperado momento da comemoração, servi cada fatia com mais doce de morangos. Este é um belíssimo bolo, mas só para adultos, pela quantidade de café e alcool que levam.

E se este bolo resultou bem na cozinha prussiana, aposto que resultará também na cozinha viking que a Ana comanda!

Ha’ baday tu iu, Ha’ baday tuuuu iuuuuu!

Quando a minha filha vê uma vela acesa, começa a cantar os parabéns. “Ha’ baday tu iu, Ha’ baday tuuuu iuuuuu!…”. Confesso que a primeira vez que a ouvi alegremente a cantarolar a versão britânica dos Parabéns, não percebi bem o que ela queria dizer, até que ela começou a tentar apagar as velas. E hoje quem apaga as velas é o Reino da Prússia! Há exactamente um ano atrás, quando acordei, em vez de pensar em levantar-me e na típica rotina que recheia as nossas manhãs, dei por mim a descrever mentalmente as migas que tinha feito para o jantar. Tentei afastar-me do pensamento com a rotina diária, mas fui impiedosamente perseguida por estas migas e sua receita. E, no próprio serão, rendi-me. Abri o computador  e criei o Reino da Prússia. A intenção inicial era de povoar este meu Reino não só com receitas, mas com experiências ou pensamentos que compusessem um conto.

E o que acabou por acontecer foi uma fusão das receitas com vivências, já que quando comemos, absorvemos mais do que a comida. Absorvemos cheiros, sons e sabores e deglutimos emoções com uma açorda, como a Suzana acabou de nos contar. Teletransportamo-nos no tempo e no espaço quando a cozinha emana o aroma que nos transporta para algum momento especial ou pessoa especial. Seja o bolo da Avó, ou o cheiro das sardinhas assadas que perfuma as tardes de verão depois da praia, ou o doce de tomate que faz lembrar que o Verão está no fim… E é com este pensamento que eu desafio os meus queridos leitores (que por não serem muitos são mesmo queridos!) a participarem num passatempo em jeito de comemoração.

Gostaria de sentar-me convosco em roda de uma lareira, com algumas castanhas a assar por baixo das cinzas e de ouvir as vossas estórias. Estórias que associem a uma refeição, ao cheiro de um ingrediente, à cor de um fruto, etc…. As estórias podem ser reais ou imaginárias, vividas por vós ou despertadas por um livro ou filme, mas devem conter um elemento gastronómico. Não precisa ser uma receita, podem falar simplesmente sobre um ingrediente. Desde a imponência da romã, ao perfume da alfazema, vale tudo! :). Resumindo:

– contar uma estória que tenha um elemento culinário associado;

– este elemento culinário pode ser qualquer elemento que desperte o sentido do paladar. Pode ser uma receita (ex: o bolo da avó), simplesmente um ingrediente (ex: a romã que se come com as primeiras chuvas de Outono) ou um aroma que desperte o sentido do paladar (ex: o aroma do peixe grelhado depois de um dia de praia);

– a estória pode ser real ou imaginária;

– para participar, basta responderem a este post  com o link para a vossa estória (para quem tem blogue) ou com o texto com que querem participar. As participações por e-mail e pelo facebook também contam.

– o prazo termina dia 30 de Outubro. Podem participar com posts antigos.

Num dos primeiros dias de Novembro, listo aqui todas as participações com respectivos links. E sentamo-nos então à lareira, partilhando os nossos petiscos, as nossas memórias, as nossas estórias numa tertúlia virtual de sabores! 🙂

ps: peço desculpa à Moira pelo roubo descarado do nome do seu blogue, mas é a expressão perfeita para este acontecimento!