Salada para uma tarde de fim de Verão

O fim do verão aproxima-se. Setembro confere-lhe aquela luz dourada, aquela luminosidade que transforma em pura magia o fim de um dia de verão. Para celebrar o fim do verão e esquecer que a noite – ou o inverno prussiano – aí vem, absorvo os últimos raios de sol, dourados e quentinhos e faço uma salada de lentilhas. Cozo lentilhas qb, com sal e ervas (gosto de cozer as lentilhas verdes com funcho), lavo e rasgo alface e rucula, esfarelo um queijo de cabra fresco, junto as lentilhas cozidas e tempero com flor de sal, azeite e com hortelã, muitas hortelãs, desde a pimenta ao poejo.

*atenção à cocção das lentilhas, para evitar que se desfaçam: as verdes, cozo apenas 5 minutos, depois da água ferver, as beluga e as laranja deixo apenas tapadas e de molho em água a ferver, até estarem suaves.

Dr. Jekill and Mr. Hyde

Há livros que marcam a nossa infância. Trago da minha infância, dois livros especiais e tão diferentes. Já o leitor adivinhou qual é um deles. Li-o num verão, passado na casa dos meus avós, numa impressão dos anos 60 que terá pertencido à minha mãe ou minha tia. Gosto de thrillers, gosto de policiais e de uma boa investigação e gosto de romances com “settings” reais. Isto leva-me ao segundo livro da minha infância, “Os capitães da areia”. Li-o quando tinha a idade dos capitães, o que me fez pensar bastante na injustiça da vida e na sorte que eu tinha em ir para a escola. Na verdade, ainda houve outro livro na minha infância, que a minha mãe comprou depois de uma visita ao Planetário de Lisboa, e que eu li com uma sede e voracidade de saber um pouco mais. “Um pouco mais de azul”. Afinal são três… E depois havia os outros, que devorava, tentando ler devagar para prolongar o prazer. As séries de Enid Blyton, a colecção Uma Aventura…

E se eu pudesse convidar um destes personagens para jantar cá em casa, quem convidaria? As personagens de Robert Louis Stevenson ? O que haveria de servir a Dr. Jekill? ou a Mr. Hyde? E se naquela noite, os dois me concedessem  o prazer da sua visita? O que faria: carne ou peixe? Arroz ou massa? A acompanhar, água ou vinho? E no fim, serviria chá ou café? As questões seriam muitas, teria apenas a certeza da música que poria na aparelhagem. Enfim, com tantas dúvidas, mais valeria ir eu própria percorrer as ruelas escuras e mediavais que me levassem ao coração de Edimburgo, onde o pai do Dr. viveu. Seria concerteza um jantar victoriano. Servi-nos-ia a governanta Haggis? Ou uma minced pie? Fish and chips não serviria … Eram dúvidas e incertezas a mais para mim.

Então, pensei em convidar os Capitães. Mas logo me pus a pensar na logística que implicaria e decidi ir eu visitá-los. Uma viagem ao Rio em Fevereiro, Carnaval, que coincidência, quando na Europa o frio até estala não era nada mal pensado. Haveríamos de comer todos na praia, talvez algum dedilhasse numa guitarra, perguntar-me-iam se eu não tinha uns trocos para eles comprarem cigarros.
Quereriam saber mais sobre a Europa, tivessem eles o sonho de um dia visitarem o antigo Continente. Talvez o “Professor” me perguntasse se eu teria algum livro na algibeira, para ele.

E para o jantar, faria um guisado de lentilhas com bacon.

A receita: Refogar o bacon com cebola, juntar batatas, cenouras e nabo cortado aos cubinhos e lentilhas. Picar a rama das cenouras e juntar aos legumes Adicionar água até tapar os legumes. Cozinhar na panela de pressão até apitar. Se ficar muito seco, juntar chá de funcho e anis para produzir mais molho e mexer bem. E, para ouvir: Menino do Rio. Desta cidade que alberga Dr. Jekill e Mr. Hyde lado a lado e onde o céu é um pouco mais azul.

Pergunte ao seu filho: e agora, o que vem para a panela?

Hoje, depois do almoço, dei por mim a pensar na razão que me leva a alimentar o Reino da Prússia. Tudo começou com uma receita de migas e sem grande esperança na longevidade do blogue. Vou registando receitas que não quero esquecer e partilhando estórias que vivemos na nossa cozinha. Acho que é esta partilha o combustível que mantém o Reino da Prússia. Partilho hoje convosco o que se passa nesta cozinha a Leste e, amanhã, poderão as minhas filhas saber com mais pormenor o que lhes ponho hoje no prato. Por isso, decidi hoje passar à frente de todas as entradas que estão em lista de espera para ser publicadas e partilhar o nosso almoço de hoje. Perguntei à minha filha o que queria para o almoço: arroz ou massa? massa, das pequeninas, e tirou o pacote de fusili do armário. Carne, peixe ou vegetariano? vetaiano sem molho com cáne. Tirei meio quilo de carne picada do congelador. E mais? Tomate não. Estes, mamã. E tirou o pacote de pistácios do armário. Despi-me de preconceitos e acedi. E mais? E estes – vieram pinhões, pevides e sementes de girassol. Lentilhas cor de laranja. Vamos por o sal que fizemos ontem, amor? – Ontem fizemos sal aromatizado com tomilho. Sim, eu ponho. Cuidado, já chega! Disse-lhe à segunda colher de chá. Eu pus à minha conta dois cebolos picados porque não tinha cebola e dois tomates secos, para perceber se esta negação ao tomate em que a minha pequerrucha tanto insiste é real ou ficção. E pus um quarto de pimento vermelho, que ela adora crú ou cozinhado. Nóni não, disse-me ela apontando para as cenouras. Perguntei se ela queria pôr cacau. Sim, que pergunta! Pus tudo a cozinhar ao mesmo tempo (excepto as massas) regado com um fio de azeite durante uns cinco ou dez minutos. Juntei bastante água a ferver e deitei os fusili. Foi para a mesa e ela portou-se como uma dama – mas rejeitou o tomate seco.  A mim soube-me a felicidade. Deixo o testemunho desta receita e deixo-lhe a si, caro leitor, a decisão de querer arriscar ou não. Esta combinação de ingredientes ou a pergunta ao seu filho.

Risotto al nero di… di… de quê?

Quando estivémos em Veneza há uns anos atrás, no tempo em que as calças de ganga ainda me serviam, comemos um risotto com tinta de choco supremo, divinal. Em Portugal, delicio-me com os chocos grelhados com tinta, temperados com alho e é com grande prazer que deixo a tinta negra do choco promiscuir os meus dedos, boca, lábios, língua e dentes. Na verdade, até ver e provar o risotto nero, nunca tinha pensado noutras maneiras de consumir a tinta daquele animal marinho a não ser à bela moda portuguesa. E fiquei a pensar que bom que seria encontrar por aqui os chocos com tinta, apesar de não ter depositado grande esperança no assunto. Até ao dia em que descobri que a tinta se vende separada e embalada! Então o risotto al nero di seppia entrou na minha “top 10 to cook list”.

Hoje ao almoço tive vontade de risotto, então fui ver o que tinha no armário e que podia combinar com o arroz arbóreo. O leitor que atentou na imagem não se deixou levar pela minha conversa inicial e já percebeu que o que eu tirei do armário não foi tinta de choco separada e embalada. E até pode ter reparado nas pequenas bolinhas negras que compõem o risotto e que são, nada menos, lentilhas beluga. Comecei por lavar 125gr de risotto e uma mão cheia de lentilhas negras. Reservei. Cortei uma cebola e dois dentes de alho e fritei levemente em azeite. Juntei o arroz e as lentilhas ao azeite e pensei em risotto al nero di sepia quando vi o negro das belugas contaminar o arroz. Entretanto, noutra panela já fervia água com um talo de bróculos cortado às fatias para o caldo de legumes. Envolvi bem o arroz no azeite e juntei uma colher de concha do caldo fervente, mexendo sempre. Repeti o processo durante 15 minutos, que era o tempo indicado na embalagem do arroz. Provei e ainda estava duro. Depois fiz algo de haveria de fazer desmaiar de desespero o chef de cozinha mais resistente, juntei um copo de água fria, embrulhei com panos e jornal e deixei acabar de cozinhar no seu próprio calor. O leitor experiente na cozinha já deve estar a arrancar cabelos com tantas derrapagens que só podem ser perdoadas pela tamanha ingenuidade desta cozinheira (no fogão e noutros sítios da vida). Lavar risotto como se fosse outro arroz???? Juntar água fria como a outro arroz???? A verdade é que nunca vi estes dois processos numa receita de risotto, mas a outra verdade é que este risotto al nero di beluga foi aprovado pelos ingénuos paladares desta cozinheira e sua filha, que não se convenceu com os bróculos e cenouras cozidas que acompanhariam o risotto, e que dizia “rôxxzz, maix, mamã.”