Era uma noite cálida de Outubro. Estava na Gare do Oriente, em Lisboa, à espera do comboio e à espera da resposta à pergunta a queimar a garganta. “Será que este é o meu comboio?”, “claro”, respondi-me imediatamente, “a decisão certa é aquela que se toma” relembrando um provérbio oriental. Deixei-me dominar pelo misto de excitação, felicidade e nervoso miudinho que me invadiu. Nas duas malas, a meu lado na Gare, tinha empacotado a minha saudade. Tudo o que não coube na bagagem, reduzi a pó. Às onze badaladas, despedi-me dos três amigos, que são família e amigos, amigos e família e parti. Já no comboio, pensei que mais uma vez ia mudar a terra sob os meus pés. Olhando pela janela, disse a mim própria que mudava a terra, mas não mudava o céu, ao reconhecer uma ou outra constelação na noite escura. Cheguei a Madrid, onde tomei o pequeno almoço, continuei até Paris, almocei, e cheguei a Berlim para o jantar. Para o jantar, para uma vida, para várias vidas.
Vinte e tal anos depois, estava na hora de voltar a apanhar o comboio. Numa noite de Dezembro, quando um vendaval rodopiava nas janelas, pus um tacho ao lume com um litro de água, 5 cravos da Índia, 5 vagens de cardamomo, 1 pau de canela, um pedaço (1 cm) de gengibre e 5 bagos de pimenta preta. Fervilharam no tacho durante 25 minutos.
“Amor”, chamei, “contas-me outra vez aquela tua história com o Guru no Nepal?”, “Outra vez?!?! … bom, está bem. Já lá vão 35 ou 40 anos, não sei. Cheguei à aldeia e dirigi-me a um grupo de pessoas. Estavam todos à espera que o Guru saísse da sua gruta, para ouvirem as suas palavras sábias. Fiquei também à espera. Finalmente saiu. O eremita, com dreadlocks que lhe chegavam ao rabo, estava totalmente besuntado com cinzas de excremento de vaca. É, parece estranho, não é? Mas para os Hindus, o fogo é sagrado e as vacas são sagradas. E excrementos de vaca queimados são super sagrados!” Tive que voltar a rir com a sua frase e pedi-lhe que continuasse. “Passou um cachimbo, que foi de mão em mão pelos elementos do grupo e começou a falar. Eu não percebi uma palavra, mas fiquei totalmente magnetizado, hipnotizado pelas suas palavras, pela sua expressão. Não sei quanto tempo passou, mas sei que ardia em sede, precisava de beber algo. Felizmente, passou pelo grupo também um chá, que eu bebi de uma assentada, sem perguntar antes que chá era. Pois bem, descobri da pior maneira que era um chá de chili super forte, que me deixou com as goelas a arder!”
E eu voltei ao meu chá. Desliguei o lume, juntei uma saqueta de chá preto e deixei em infusão durante 2 ou 3 minutos. Verti algum chá na minha chávena e fui buscar uma cervejinha gelada para o meu marido. Pedi-lhe que se sentasse no sofá vermelho, que precisava de lhe falar. “Temos que fazer as malas”, disse-lhe, “o tal comboio que um dia partiu de Lisboa, está quase a partir, agora de Berlim.”, “O que devo pôr na mala?”, perguntou, “O mesmo que puseste quando foste ver o Eremita. O comboio nocturno leva-nos até S. Petersburg, daí apanhamos o transiberiano para sul e depois, ainda não sei como, vamos às montanhas do Nepal, a templos no Tibete e seguimos para Varanasi. E depois… ” A gargalhada do meu marido interrompeu-me: “Ahahahah! Acho que o teu comboio nocturno para o transiberiano é um avião para Katmandu!” Eu ri-me com ele e dei um gole no meu chá Yogi, deixando envolver-me no leve e agradável picante da pimenta e do gengibre. Já lá estávamos…
Assim participo no desafio chocolate e picante que a Suzana lançou – enquanto trinco um quadradinho de chocolate a 80%. Esta é uma estória verídica. Se algo ainda não aconteceu, é porque vai acontecer!