Convidei para jantar …

Cheguei a casa com os sacos das compras e pronta para preparar o jantar de hoje. Desta vez, tinha tudo organizado: a ementa apontada num rascunho, todos os ingredientes na bancada da cozinha e ainda bastante tempo até à hora marcada. Comecei pela sobremesa: bolo de chocolate e beterraba. Adaptei a receita da Leonor, reduzindo a quantidade de açúcar, manteiga e farinha e aumentando a quantidade de chocolate.

Bati três ovos com 125 g de açúcar amarelo até ficar uma espuma volumosa e esbranquiçada. Derreti uma barra de chocolate de 200g com  uma colher de sopa de manteiga e outra de leite. Entretanto, misturei os secos: 125 g de açúcar amarelo, 3 colheres de sopa de farinha e 50 g de cacau em pó com 50 g de chocolate em pó. Triturei 200 g de beterraba cozida e juntei aos ovos. A esta mistura, juntei o chocolate derretido e, finalmente, envolvi os secos suavemente. Distribuí a massa pela forma e, ao por o bolo em forno aquecido a 180 graus, toca a campaínha.

“Quem será?”. Pensei nem abrir a porta, mas em boa hora fui, pois foi o meu convidado que chegou. Convidei um prussiano de gema, uma mente brilhante capaz de prever o sistema capitalista que vivemos hoje, 150 anos antes. Era Karl Marx que estava à minha porta. Dei-lhe as boas vindas e recolhi o casaco pesado deste velhote de barbas brancas. Também lhe disse que não o esperava tão cedo. “Ah, já estou muito velho… e, desde que cheguei ao mundo dos mortos, que perdi um pouco a noção do tempo. Mas cheira muito bem!”.

Desliguei o forno e servi-lhe uma fatia de bolo. Perguntei se preferia acompanhar com chá ou café. Pediu-me um café forte, preto. Fiz, e arrisquei a piada fácil: “Aqui está, capaz de acordar um morto!”. Ele, riu-se. Entretanto, o meu marido perguntou-lhe como é que ele foi capaz de prever o sistema capitalista em que vivemos com tal precisão. Embrenhámo-nos na conversa e ele pergunta-nos: “E vocês, o que fazem para fugir a esse tal sistema capitalista em que vivem?”.

Ao terminar a pergunta, tocou a campaínha. Noto uma certa agitação em Marx. Ao abrir, outro senhor de barba branca. “Sigmund Freud”, apresentou-se. “Sei que o meu amigo Marx está aqui”. Assenti e convidei-o a entrar. Marx e Freud cruzaram olhares e logo Marx nos disse: “Peço desculpa… mas sabem, no mundo dos mortos pouco se passa, e quando há um acontecimento como este Convidei para Jantar, há sempre um burburinho…” Eu disse-lhe que fiquei contente com a surpresa e servi uma fatia de bolo e uma chávena de café a Freud. Ele provou e comentou sobre a consistência do bolo e logo eu, sem que ninguém me perguntasse, revelei o segredo do vegetal de vermelho vibrante, disfarçado pelo castanho do chocolate.  Logo Freud, de olhar intenso, me perguntou: “Como é que você se sentiu quando viu as suas mãos manchadas de sangue?!?!?”, ao que lhe respondi: “É, realmente, assombrante, o que nos acontece ao tocarmos na beterraba.”, “Ao tocar na beterraba?!?!”, ripostou Marx, “vocês têm a noção da pressão que vocês, consumidores, impõem aos produtores de café e chocolate para estarmos aqui e agora a apreciar este bolo e este café?!”. Dei-lhe razão e perguntei-lhe porque vivemos num sistema de mercado livre. Acho que o preço de um produto deveria reflectir o trabalho do produtor e deveria haver uma margem fixa de lucro, definida em percentagem sobre o preço efectivo de produção – para que não se caísse na tentação de diminuir o custo de produção para aumentar o lucro – e era nesta margem que entrariam as comissões dos intermediários. Acrescentei que isto era o que os políticos deveriam fazer e todos se riram com a minha ingenuidade. Pode ser que, por detrás de um pequeno político esteja um grande capitalista, mas à volta do político e do capitalista está o povo.

Assim, depois de receber o testemunho da Carla, abro a edição de Junho/Julho da iniciativa “Convidei para Jantar”, iniciada pela Ana.

Proponho-vos o tema “Mentes brilhantes” e digam-me quem vocês admiram, quem é que vocês acham que tem a centelha da genialidade.

Para participar, basta responder a este post com a vossa participação até ao dia 16 de Julho.

61 thoughts on “Convidei para jantar …

      • Esperei por ele nessa tarde chuvosa de verão com um bolo de ricotta e amêndoa em cima da mesa e uma pistola presa ao fundo da minha cadeira. Todo o cuidado é pouco, pensei. A sua vida de agente duplo ao serviço da Russia e Alemanha e o seu obscuro caso com Gorky mais que justificam a precaução. A campainha toca.

        Entrou com o seu chapéu alto completamente molhado, gabardine preta até ao joelho e um Montecristo nr.4 aceso entre os dedos. Cordialmente convidei-o a entrar. A sua voz revelou ser surpreendente suave para tal figure austera. Olhou o bolo, deu meia volta à mesa e sentou-se na minha cadeira. “Espero que não se importe que lhe tome o lugar”, disse ele com um sorriso nos lábios. Nem tentei disfarçar a minha surpresa e sentei-me na cadeira que reservara para Israel Gelfand, mais conhecido para história como Alexander Parvus.

        “Convidou-me para comer bolo ou para algo mais?”. O mesmo sorriso inquietante pairava na sua face. Pousou o charuto no cinzeiro, puxou uma chávena, quatro folhas de menta frescas e preparou um chá. Sabe Luís, a vida de revolucionário prepara-nos para quase tudo. Imagino porque me convidou, mas aquilo que o senhor quer saber já pouco ou nada interessa”. Decidi passar ao ataque. Puxei um copo, verti dois dedos de Octave 82 e acendi um Montecristo nr.5. “Senhor Parvus, apenas quero que os livros de história estejam completos”.

        Os seus olhos como que ganharam vida, pousou o garfo com que havia acabado a sua fatia de bolo e levantou-se. Percorreu a prateleira dos livros com os olhos e respondeu com um tom doce. “A história nem sempre é de quem a faz mas sim dos que cá ficam para a contar, os vencedores. Infelizmente eu não venci, apesar de todo o empenho que coloquei no Partido. Sabe, fui eu quem organizou a viajem de Lenin das montanhas Suíças até S.Petersburgo para que ele pudesse dar início a esse maravilhoso Outubro. Com o camarada Trotsky aperfeiçoei o conceito de revolução permanente idealizado por Marx”.

        Levantei-me, passei os dedos pelos volumes na prateleira e puxei um livro verde com letras douradas. Coloquei-o em sua mãos e disse: “Foi tudo isso em nome do Partido ou em nome dela?”. Visivelmente abalado olhou a janela salpicada de pingos de água como que olha um vazio de 100 anos. “Sabe onde ela se encontra?”. Prontamente respondi que sim. “Sem ela a minha vida ficou vazia, fugi para Istambul, passei a vender armas e a destabilizar poderes políticos; até roubei camaradas, camaradas. Imagina a minha dor?”. Acenei levemente com a cabeça. Acrescentei que existe uma maneira de remendar o passado, basta revelar onde se encontram os 30.000 Marcos que nunca foram pagos a Gorky para acabar com anos de mal entendidos. Parvus ficou visivelmente abalado, tomou a porta de saída e colocando gabardine sobre os ombros disse: “Caro Luís, obrigado pelo bolo, tenha um bom dia”.

        Na manhã seguinte enquanto preparo o café reparo que a biografia de Rosa Luxemburgo não se encontra no local devido. Abro o livro e dentro encontro uma carta de Parvus. “Obrigado Luís pelas instruções que secretamente deixou na minha gabardine em como encontrar Rosa Luxemburgo – como conseguiu tal feito? Finalmente juntos após tanto tempo! Como troca envio a localização da parcela nunca paga a Gorky, sei que a deixo em boas mãos. PS: A Rosa pede a receita do bolo de ricotta”.

        Sem mais demoras saio de casa e apanho o próximo ferry para a Pfaueninsel…

        Receita:

        250 g de Ricotta revolucionária
        250 g de Amêndoa Bolchevique moída
        3 ovos separatistas em claras e gemas
        150 g de açúcar Soviético
        Raspas de lima ralada
        1 colher de chá de aroma de amêndoa

        Aquecer o reactor a 150 graus.

        Bater as claras energeticamente como quem bate no Czar. Misturar açúcar, gemas, raspas de lima, aroma de amêndoa e queijo na praça vermelha. Juntar as claras em castelo à mistura envolvendo o proletariado.

        Colocar o preparado numa forma redonda tipo Sputnik untada com manteiga. T menos 1 hora até descolagem.

      • Luis, a tua participacao e genial. Desde a primeira a ultima palavra, o enredo e as personagens! Adorei e dei umas belas gargalhadas!! Obrigada pela participacao fantastica! 🙂
        um beijinho
        Sofia

  1. Depois de falhar a edição anterior, vou ver se consigo participar nesta.hmmm..mas concordo com a Carla ,este desafio não vai ser nada fácil…mas tem muito de aliciante.Parabéns pela escolha do tema.
    Beijinhos

    • Olá Nita
      Obrigada pela tua visita ao Reino da Prussia! Estive a espreitar o teu blogue e gostei muito – aqueles cestinhos de morangos sao muito tentadores!
      Fico à espera da tua participação!
      Sofia

  2. Olá Sofia. Que “vivos” convidados tu escolheste? Deliciei-me com a tua história. O tema é bastante apelativo e amplo nas escolhas.Não prometo para não faltar, mas acho que mais uma vez vou cair na tentação de participar.
    Um abraço.
    Patrícia

    • Olá Guida,
      O tema pode ser realmente abrangente… por que não pensas numa coisa que realmente gostas de fazer e em quem é o teu ídolo, o teu guru nesse campo?
      Beijinhos e fico à espera da tua participação!
      Sofia

  3. Sofia, vou fazer de tudo para conseguir participar 🙂 Não me vai ser nada fácil mas acho tão interessante! Cá pra mim Freud ia levar essa fatia de bolo de chocolate e beterraba para o campo da sexualidade haha Vermelho é perigoso 😉

    • Ahahaha! É verdade, Ameixinha. Eu pensei levar para o complexo de Édipo, mas não me desenrasquei então fiquei-me pelo vermelho sangue! 😉
      Espero mesmo que consigas participar!
      Beijinhos
      Sofia

    • Olá Su.
      Se à primeira vista poderá parecer-te complicado, lembra-te que ainda tens muito tempo para pensar.
      Mas olha: porque é q n convidas a primeira pessoa q te vem à cabeça qdo pensas em “mentes brilhantes”?
      Fico à espera da tua participação e curiosa com o teu (ou tua) convidado! 🙂
      Beijinhos
      Sofia

  4. Sofia
    Gostei muito do tom bem disposto com que abordaste temas muito sérios. E os teus convidados foram muito bem escolhidos para fazer jus ao tema.Um beijo

  5. Olá Sofia! Que tema brilhante! Não poderias ter escolhido melhores convidados.. Que delicia ler o teu texto! Tive pena de não participar no último tema, pois estive de férias… Mas para esta edição já estou a pensar no meu convidado!
    beijinhos*

    • Olá Pamisami,
      Obrigada! 🙂
      Eu tb. n consegui participar no teu CPJ, apesar de ter um convidado… quem sabe se não virá ainda, atrasado!
      Espero então para ver quem é o teu convidado desta vez!
      Beijinhos
      Sofia

    • Carla,
      Muito obrigada por nos mostrares o verdadeiro sentido de “arte”, através do teu convidado! Já comentei no teu post, mas volto a dizer que, para mim, arte não é (só) pintura, escultura, etc. Arte é o que os génios fazem, quer seja no atelier, na oficina ou numa mesa de cirurgia. Arte é o que brilha no escuro! 😉
      Beijinhos
      Sofia

  6. olá Sofia, se é que assim te posso tratar. Encontrei o teu blog nesse mundo que se chama net e amei. Devo te dizer que convido o meu filhote mais novo que aos 12 meses é um ser que não fala, mas corre, joga futebol, escolhe as músicas que quer ouvir chorando ou não e usa o mesmo método pra coisas infindáveis. Acho isso genial porque a comunicação é fazer a mensagem chegar ao receptor da melhor forma e isso ele faz muito bem com tão tenra idade. Por isso vou já preparar a sua/nossa sopinha. Luís, muito obrigada pelo texto. Ri como nunca. ❤•.¸¸✿⊱♡°º °♫♫♪¸.•°`♡✿

    • Olá Ginja.
      Que belíssima escolha. Aqui está alguém que (vi)via a vida realmente “out of the box”.
      Gostei muito do teu texto.
      Obrigada pela tua participação
      Beijinhos
      Sofia

  7. Obrigada por este desafio 🙂
    Aqui fica a minha participação :)http://obolodatiarosa.blogspot.pt/2012/07/morangos-com-mascrapone-e-iogurte-grego.html

    • Olá Guida
      Convidaste um dos meus ídolos, também. Lembro-me que, em criança, tinha um livro ilustrado chamado “Artistas que revolucionaram o mundo”. Nele, uma imagem de Leonardo q não esqueço: a comprar pombos na praça para a seguir os libertar.
      Obrigada pela participação
      Beijinhos
      Sofia

    • Querida Babette,
      Uma mente realmente brilhante. Foi para mim uma emoção “presenciar” o teu jantar com Marie Curie.
      Um grande beijinho e obrigada pela participação!
      Sofia

  8. Sofia, depois do seu “Introitus” oitocentista a fasquia estava bem elevada. E assim se manteve com as mentes brilhantes e histórias aqui apresentadas. Se me é permitido uma menção especial, a-d-o-r-e-i a história do Luís!!! Chorei de tanto rir e corri para googlar o Alexander Parvus, cuja história desconhecia.
    O meu convidado também fala alemão. E foi, sem qualquer sombra de dúvida, brilhante.
    http://www.paodecereais.blogspot.pt/2012/07/quando-soube-o-repto-lancado-este-mes.html

  9. Sofia, peço imensa desculpa, mas foi-me de todo impossivel participar… 😦
    Tem sido de doidos lá na padaria, e não tenho tempo para nada!! Mas fico ansiosamente à espera do apanhado final 🙂

  10. Pingback: No reino da Prússia

  11. Completamente fora de prazo, este meu comentário, mas tinha de te dizer PARABENS pelo teu excelente texto, pelas personagens e pela justa mensagem que nos deixas!
    Congratulo-me com esta deliciosa participação num desafio que só podia de Mentes Brilhantes. Parabéns a todas. Bjs. Bombom

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